Yayoi Kusama | Artista do Mês | Setembro de 2017

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O trabalho de Kusama se apresenta como colagens, pinturas, esculturas, performance e ambientes, onde se destaca sua marca registrada: a obsessão por pontos e bolas

A vida de Yayoi Kusama é um testemunho pungente do poder de cura da arte, assim como um estudo sobre a resiliência humana. Atormentada pela doença mental quando criança e abusada por uma mãe insensível, a jovem artista perseverou usando suas alucinações e obsessões pessoais como alimento para uma produção artística prolífica em várias disciplinas.

Isso firmou um compromisso vitalício com a criatividade, apesar do nascimento da artista em uma cultura japonesa tradicional, que ofusca as mulheres, e da sua carreira em Nova York surgindo em um cenário dominado pelos homens. Hoje, Kusama reina como uma das artistas femininas contemporâneas mais consagradas, trabalhando de sua residência fixada voluntariamente em um hospital psiquiátrico desde 1977.

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Ideias-chave da produção de Kusama

Quando Kusama começou a ter alucinações, ainda criança, sua maneira de lidar com o fenômeno bizarro era pintar o que via. Ela diz que a arte se tornou uma maneira de expressar sua doença mental. O que se destaca são os padrões repetitivos e as suas instalações, nas quais Kusama cria ambientes elaborados, invadidos por bolinhas ou pequenos pontos de luz.

Da mesma forma em que Kusama usa a arte para processar alucinações, ela também usa seu trabalho para enfrentar fobias pessoais, especialmente o medo do sexo – que se revela através de esculturas e móveis cobertos por múltiplas formas fálicas.

Sua familiaridade com a luta pela vida e a sua compaixão com pessoas envolvidas em causas contra a injustiça levaram Kusama a associar-se, mesmo que brevemente, a movimentos subculturais de seu tempo, como a cultura hippie dos anos 60 e o feminismo.

Para Kusama, a arte se tornou um mecanismo essencial de sobrevivência. Era sua única ferramenta para fazer sentido de um mundo no qual ela residia na periferia da experiência normativa e, como resultado, tornou-se a própria coisa que lhe permitiu ser assimilada com sucesso na sociedade.

Infância e primeiros estudos

Nascida em 1929 em Matsumoto, Japão, Kusama cresceu como a menor dos quatro filhos em uma família abastada. No entanto, sua infância não foi das melhores. Seus pais eram o produto de um casamento arranjado, sem amor. O pai, ausente, diminuído pelo fato de ter de assumir o sobrenome de sua esposa como condição para se casar com a família rica, passou a maior parte do tempo fora de casa, deixando que sua esposa irritada abusasse fisicamente e atormentasse emocionalmente a filha caçula. Ela costumava enviar Kusama para espionar as façanhas sexuais do pai, causando nela o trauma permanente que resultou na aversão ao sexo e ao corpo masculino.

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Aos dez anos, Kusama começou a experimentar alucinações vívidas, onde as flores falavam com ela e os padrões dos tecidos ganhavam vida e a consumiam. Ela começou a desenhar essas visões como uma saída terapêutica, proporcionando-lhe consolo e controle sobre a ansiedade que a atormentava.

Quando Kusama tinha 13 anos, foi enviada para trabalhar em uma fábrica militar, costurando paraquedas para os combatentes da Segunda Guerra Mundial no Japão. Passou sua adolescência na escuridão da fábrica, ouvindo sirenes de ataque aéreo e sons de aviões do exército que voavam sobre a cabeça. Os horrores da guerra teriam um efeito duradouro sobre ela, levando Kusama a criar inúmeras obras contra a guerra e também a valorizar a liberdade individual e criativa. Sua experiência na fábrica também lhe rendeu a capacidade de costurar, que se tornou útil quando ela começou a criar suas esculturas na década de 1960.

Início da produção artística

Desobedecendo a sua mãe, que queria que ela simplesmente fosse uma dona de casa obediente, Kusama estudou arte em Masumoto e Kyoto. Naquele tempo, havia um movimento no Japão para rejeitar as influências da cultura ocidental, então Kusama foi forçada a estudar apenas Nihonga, que consistia em criar pinturas usando técnicas e materiais japoneses tradicionais de mil anos de idade.

Mesmo ainda jovem, o talento artístico de Kusama já era nítido e seu trabalho foi exibido em exposições em todo o Japão.

No entanto, a cultura conservadora japonesa e sua mãe abusiva colocaram a artista a prova em demasia e, em 1957, ela mudou-se para os Estados Unidos, instalando-se em Nova York em 1958. Antes de partir, a mãe de Kusama entregou-lhe algum dinheiro e disse-lhe “para nunca mais pisar em sua casa “. Em resposta, Kusama destruiu com raiva centenas de suas obras.

Yayoi Kusama, The Obliteration Room, 2002

Yayoi Kusama, The Obliteration Room, 2002

Período maduro

Uma vez nos Estados Unidos, Kusama estava livre para explorar sua expressão artística, censurada enquanto vivia no Japão. “Para uma arte como a minha, [o Japão]era muito pequeno, também servil, muito feudalista e muito desdenhoso das mulheres. Minha arte precisava de uma liberdade mais ilimitada e de um mundo mais amplo”. Com a ajuda da Georgia O’Keeffe, com quem Kusama havia iniciado uma correspondência e uma amizade desde o Japão, conseguiu garantir exposições e algumas vendas, despertando o interesse pelo seu trabalho desde o início.

Mas ela também despertou fascínio e logo iniciou um relacionamento profundo com o artista minimalista Donald Judd. Ele admirava tanto o trabalho de Kusama que comprou uma de suas primeiras pinturas Infinity Net. O artista Joseph Cornell se apaixonou por Kusama, escrevendo-lhe muitas vezes cartas de amor e esboçando-a nua.

Por causa de suas ansiedades e sua fobia de sexo, ambos os relacionamentos, embora muito próximos, eram estritamente platônicos. Cornell compartilhava de sua aversão sexual e Kusama observou certa vez que “(Cornell) odiava o sexo. É por isso que nos deparamos tão bem”. Kusama e Cornell desenvolveram um vínculo tão estreito que, quando ele morreu em 1972, começou a criar colagens para honrar seu trabalho e lidar com sua morte.

Durante esse tempo, Kusama trabalhou arduamente, abraçando a cultura hippie hedonista e de espírito livre da década de 1960, que também incluía protestar contra a guerra, o patriarcado e a sociedade capitalista. Combinando esses temas com suas próprias ansiedades íntimas, ela criou uma arte profundamente pessoal, mas que também falava sobre as injustiças dos tempos. Os críticos não sabiam como lidar com esta arte inovadora e logo a artista passou da obscuridade para a notoriedade.

Sua fama rivalizava com a de alguns dos artistas Pop mais famosos e Kusama apreciava esta atenção. No entanto, essa busca pela fama também pode ser vista como um esforço para auto-validar sua existência e reivindicar sua identidade, em oposição aos obstáculos colocados sobre ela pela negação inicial da família por sua carreira e sua batalha com doença mental.

A produção artística de Kusama durante este período de 15 anos foi prolífica e diversificada, experimentando vários suportes como desenho, pintura, escultura, performance, moda, escrita e instalação. Ela às vezes trabalhava até 50 horas sem descanso.

Por fim, esta carga de trabalho, somada à falta de segurança financeira e à morte de Cornell, teve seu impacto e, em 1973, ela voltou para o Japão para buscar tratamento para o esgotamento mental e a diminuição da saúde física.

Ela começou a se concentrar em sua linha surreal de escrita e roupa de vanguarda e, em 1977, depois de ter sido diagnosticada com neurose obsessivo-compulsiva, Kusama se internou voluntariamente no Hospital Mental Seiwa, onde vive e trabalha desde então.

Reconhecimento e recordes

Quando Kusama voltou ao Japão, no início da década de 1970, estava quase esquecida pelo mundo da arte ocidental. Mesmo no Japão, ela era mais conhecida por seus escritos embebidos de violência. Isso mudou em 1993, quando foi convidada a representar o Japão na 45ª Bienal de Veneza. A aclamada instalação de um dos seus Infinity Mirror Rooms, contendo abóboras pontilhadas, juntamente com suas performances ao longo da exposição, renovou o interesse e apreciação por seu trabalho, juntamente com o interesse pela peculiar artista. Kusama ainda procura ser o centro das atenções e continua a insistir em ser fotografada com o trabalho. Com a sua característica peruca vermelha e as roupas de bolinhas da sua própria confecção, a personalidade de Kusama tornou-se tão apaixonante quanto a sua arte.

Em 2008, um dos Infinity Nets de Kusama –  aquele mesmo adquirido por Judd – estabeleceu novos recordes de preços em leilões de arte para uma artista feminina viva e resultou em colaborações com designers de moda de luxo, como Marc Jacobs e Louis Vuitton. A mulher, cuja arte protestou contra o capitalismo e o materialismo, agora o tinha abraçado completamente.

O legado de Kusama

Mais importante do que o impacto que seu trabalho diversificado tem no mercado de arte é a influência de Kusama sobre outros artistas e movimentos, que abrange diversas gerações. Seu trabalho inspirou artistas pop, como Andy Warhol, artistas feministas, como Carolee Schneemann, artistas de performance, como Yoko Ono e artistas contemporâneos, como Damien Hirst.

O longo alcance de sua influência pode ser atribuído ao fato de que Kusama sempre foi um passo à frente de seu tempo, com sua arte sendo a vanguarda dos principais movimentos artísticos. E, no entanto, porque sua arte é tão pessoal e um sintoma e uma cura para sua doença mental, não se encaixa perfeitamente em nenhum desses movimentos definidos. Como outro artista pop, Claes Oldenburg afirma: “(Kusama) não tinha o tipo de mente que se identificava com os movimentos. Ela seguiu seu próprio caminho”. Até hoje, ela se representa mais confortavelmente como um lobo solitário do que em ser conhecida como vanguarda independente.

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